quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Ausência!...

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Amigo!...

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra "amigo"

"Amigo" é um sorriso

De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta,
que se oferece,

Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!"Amigo"

(recordam se, vocês aí,Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,

Não o erro perseguido,
explorado,

É a verdade partilhada,
praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,
Um espaço útil,
um tempo fértil,

"Amigo" vai ser,

é já uma grande festa!


Alexandre O’Neill

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Olhos Deslumbrados


A plácida cor deste hálito envolvente,

a tangível paz de calor e da savana,

o céu enfeitiçado de azul sem mácula,

a modorra só quebrada pelo canto

e o mar - um velho cão adormecido.



Fernando Couto

sábado, fevereiro 24, 2007

Colamos as bocas!...

Respiramos a luz
Do olhar
ou da janela aberta
Sobre o abraço.
É quente e suave
A tua voz colada à minha
Ressoa a intimidade.
Escrevemos o tempo
na memória
Juntamos as bocas
Num beijo adiado
Ouvindo o mar
Cruzamos o desejo
Com palavras despidas!...

annadomar


sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Amigo!...


Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também
Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também
( Relembrando Zeca Afonso)

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Poema Dadaísta!...


Receita Dadaísta:

Pegue um jornal.
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo
do tamanho que você deseja dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção
algumas palavras que formam
esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem
em que elas são tiradas do saco.
O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original
e de uma sensibilidade graciosa,
ainda que incompreendido do público.
Tristan Tzara (poeta Romeno)

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Matas....


Matas criavam histórias
E medos. Os caminhos
Também fugiram.
Olhando
O céu, às vezes
transformados em nuvens.
Saí das águas do mar
E nasci no cafezal de
Terra roxa.
Passei a infância
No meu povoado arenoso.
Andei de bicicleta e em
Cavalo em pêlo.
Tive medos
E sonhei.
Viajei pelo espaço.
Fui à lua primeiro do que o sputnik.
Caminhei além,
muito além , para
Lá do paraíso.
Desci de pára-quedas,
Atravessei o arco-íris,
cheguei
Nos olhos-d'água antes do sol nascer.

Candido Portinari

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Cabul!...



Isto sim é que são amigas verdadeiras! Nunca falam nas rugas, no estás mais gorda ou ainda estás um pouco em baixo de forma! Aprendam! BRUXAS!...

annadomar

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Máquina do Mundo!


O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos,
porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto é matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo,
erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
Romulo de Carvalho

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Entrudo chuvoso!



É o cair das máscaras e da folia

É o tempo de fazer de conta

que a felicidade nos atordoa

é agora que todos gritam- é carnaval

ninguém leva a mal!...

Alguém levará a bem?...

annadomar

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Antes....


Antes não compreendia que as minhas perguntas não obtivessem resposta.
Hoje não compreendo porque um dia acreditei ser possível fazer perguntas.
Franz Kafka

Resistir!...

Dobrar na boca o frio da espora
Calcar o passo sobre lume
Abrir o pão a golpes de machado
Soltar pelo flanco os cavalos do espanto
Fazer do corpo um barco e navegar a pedra
Regressar devagar ao corpo morno
Beber um outro vinho pisado por um astro
Possuir o fogo ruivo sob a própria casa

numa chama de flechas ao redor.


Joaquim Pessoa

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Em nome do Senhor Valentino!...


O silêncio da fala!...

São tantos
os silêncios da fala
De sede

De saliva
De suor
Silêncios de silex

no corpo do silêncio
Silêncios de vento

de mar
e de torpor
De amor
Depois, há as jarras

com rosas de silêncio
Os gemidos

nas camas
As ancas

O sabor
O silêncio que posto
em cima do silêncio
usurpa do silêncio
o seu magro labor.


Maria Teresa Horta

terça-feira, fevereiro 13, 2007

As mãos!...

As mãos vazias , carregaram-se
de promessas não cumpridas...
Mas um dia há, em que tudo acontece
O olhar muda
A esperança cai
O tempo morre no peito
O Norte muda de sítio
A boca desaprende o sorriso...

Fica a vontade de com essas mãos
Cobrir o rosto
Ou ainda por fim já no limite
Fazer uma festa ao primeiro
estranho que se cruza connosco.
E aí de novo renasce tempo
no peito, de onde se solta um suspiro
fundo, que escorrega pelo amanhã!...

annadomar

domingo, fevereiro 11, 2007

Jaula de Néon!...


aqui está a paixão de quem atravessa a noite
do mundo... espiando o deserto da cidade
numa carruagem de metropolitano... sabes
perdi o rastro do pai e da mãe durmo onde calha
mas isso não vemos na fotografia

tenho tempo
as calças que me deram hão-de ajustar-se à medida
do meu corpo... a noite
comeu a pequena alegria do coração

o puto da cabeça rapada talvez seja apenas uma visão
pouco vemos do seu rosto franzino... os milhões de rostos
daquele rosto inclinado para o peito o olhar absorto
no enigmático trabalho das mãos... uma moeda?
uma caixa de fósforos para incendiar o susto da noite?

insondável jaula de néon onde te movimentas
mudas de alcunha para te manteres inacessível ao insulto
mas a pobreza é coisa que não se remedeia com a venda
do corpo e de pensos rápidos

já aqui não passam metropolitanos
a esta hora em que subúrbio de lata te escondes?

vem comigo...ensinar-te-ei o uso da fuga
e o minucioso uso das facas... depois
esperaremos o primeiro metro da manhã
iremos ver as árvores dos jardins subterrâneos
Al Berto

sábado, fevereiro 10, 2007

Respiro o teu corpo...


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.


Eugénio de Andrade

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Vil metal!....


A vingança chega um dia e serve-se fria!...
annadomar

Queria dizer-te...

Queria dizer-te o meu amor
por palavras e gestos nunca usados...
mas não sei de palavras que digam o indizível
sei apenas que és o campo onde germina
a semente da minha paz o tempo dos meus braços
colhendo os frutos do teu corpo aberto...

António Arnaut

quinta-feira, fevereiro 08, 2007



Há diferentes maneiras de olhar uma maçã: a do rapaz obrigado a esticar o pescoço para ver à justa a maçã em cima da mesa , e a do dono da casa que pega nela e estende livremente ao seu convidado.

Franz Kafka (Meditações)

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Esta paisagem!...



Esta subtileza inequívoca

Com que se veste

Esta paisagem etérea

Apetece soprar,

muito de mansinho

E esperar que se desprendam

Os filamentos da alma

E se transformem em sombras nuas

Bordadas a negro!...

annadomar

terça-feira, fevereiro 06, 2007

Há dias!...


Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.

Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.
Eugénio de Andrade
(Pode ser já amanhã? Hoje não apetece mexer os dedos, viver, andar, perceber que seja, a vida e muito menos um sorriso.... annadomar)

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

A flor da chuva...


(Evocação do 4 de Fevereiro)


A Flor da Chuva...

e a flor da chuva no capim
tem mais perfume
abertas bem abertas estão as mãos
para abraçar esta manhã sem nuvens
ontem (não importa já o pôr-do-sol nas buganvílias)
ontem (murchas estão agora as florestas coisas
que eram coisas nada mais)
ontem havia medo até no caminhar das rolas sobre a [areia.


A poesia de hoje é a voz do povo
Todo o mundo o mundo até de algum silêncio persistente
Quer romper e rompe a mancha que da noite inda nos fala.
Ó admirável sangue a pulsar em cada estrela
O sol é negro e ilumina
A imensidão deste perfume
Que nos traz a flor da chuva
O sol é negro e brilha dos vulcões
De cada peito independente.
Madrugada de fevereiro
Sou angolano!

Andrade

domingo, fevereiro 04, 2007

As cartas escrevem-se pelas paredes!...

(extracto)

...e eu nunca parto.
Fico sempre aqui,
de mochila às costas,
sobretudo na mão,
o livro na outra,
e uma carta na algibeira,
de tinta já gasta e envelope
um pouco encardido.
Por isso mesmo,
quando me preparo para partir,
sento-me - como se estivesse a curar um cansaço
que ainda não me tomou.

Como se as minhas mãos já tivessem escrito
milhentas páginas de coisas sem sentido,
de textos sem morada
ou sem remetente definido - enfim, coisas.
Coisas como as praias. Praias como coisas.
Textos como poemas.
Poemas como não-textos...

Sérgio Xerepe

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

A beleza!


A beleza e a arte desliza em branco.
É bonito de se olhar, sentir, guardar!...
annadomar

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Eu gosto da tua cara ao fundo!...



Eu gosto da tua cara contra o fundo

circunstancial, ocupas o espaço por onde a rua
se intromete, as tuas pernas magras no passeio
como as de um fantoche que só mexe os braços.

Ao canto uma árvore fazia sombra pequena
na desconversa. Estavas mais ou menos
a dizer:nenhum futuro neste sofrimento.
O teu melhor ângulo.


Rui Pires Cabral