quarta-feira, março 31, 2010

Com fúria!...



Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de Longe muito longe um povo a trouxe


E nela pôs sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água


E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra


E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra



Sophia de Mello Breyner

terça-feira, março 23, 2010

HORAS RUBRAS!...



Horas profundas, lentas e caladas,
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas ...

Oiço as olaias rindo desgrenhadas ...
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata plas estradas ...

Os meus lábios são brancos como lagos ...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras ...

Sou chama e neve branca e misteriosa ...
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca

domingo, março 21, 2010

Senhor Imperador!


(inspirado em Boris Vian)

Senhor Imperador:
escrevo-lhe estas linhas
em nome das mulheres
— as pobres e as rainhas.

Em nome das manhãs
que nascerão sem paz;
em nome das crianças
que nascerão sem pais.

Senhor Imperador:
se é bom fazer a guerra
por que não vai você
o homem que não erra?

Se a pátria pede sangue
por que não dá o seu?
Por que matar o moço
que ainda não viveu?

Um Deus que não o seu
louvando a vida humana
virá pra nos salvar
da garra dos tiranos

dos amantes da morte,
dos senhores da Dor.
Terá fim o seu crime,
Senhor Imperador!




Renata Pallottini

quarta-feira, março 17, 2010

A ira!...

A ira nasce
em palavras sujas
nem os anjos as aguentam
assim ao fim do dia
marcam encontros
onde lavam as palavras
e fazem poemas recheados
de futuros e promessas!...

annadomar

segunda-feira, março 15, 2010

Um cais chamado Saudade!...



havia um porto
antes
ao alcance da vista

um ponto
onde as naus
suspendiam viagem

as velas arfavam
desenfunadas
e sonhavam

a lua sobre o mar
era um sabre
aparando a água

havia um porto
antes
ao alcance do corpo

(um ponto
onde hoje atraco a saudade
e mais nada)



na exígua laje
o nome em brasa

a primavera exala um odor patético
do peito do mármore
: a lâmina fina de tua morte me transpassa

da pedra ignara
um cancro floresce


a escrita
(como nos estudos de Leonardo)
é corpo dissecado

os músculos saltam dos traços


Sónia Régis

domingo, março 14, 2010

A Hora da Partida!...


A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, março 08, 2010

A luz que acende o olhar!...

sábado, março 06, 2010

Fala do Homem Nascido!...






Venho da terra assombrada

do ventre de minha mãe

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém



Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci



Trago boca pra comer

e olhos pra desejar

tenho pressa de viver

que a vida é água a correr



Venho do fundo do tempo

não tenho tempo a perder

minha barca aparelhada

solta rumo ao norte

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada



Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham

nem forças que me molestem

correntes que me detenham



Quero eu e a natureza

que a natureza sou eu

e as forças da natureza

nunca ninguém as venceu



Com licença com licença

que a barca se fez ao mar

não há poder que me vença

mesmo morto hei-de passar

com licença com licença

com rumo à estrela polar


António Gedeão
In Teatro do Mundo, 1958

terça-feira, março 02, 2010

Nos dias tristes não se fala de aves!...



Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.


Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.

(Filipa Leal, in "A Cidade Líquida

e Outras Texturas"/ Deriva Editores)