quarta-feira, janeiro 31, 2007

traz-me a flor...


Traz-me a flor transbordante
De vermelho
Prende-a nos meus cabelos
Ensaia o primeiro passo
E leva-me pelo sonho

Nestas madrugadas de silêncio
Há um adágio longo que chora
Num violino em mãos alvas
De olhos tristes

Que destino este de sentir
O peito rasgado, pelo último
Cisne que dançou neste lago
De afectos perdidos

Traz-me a flor transbordante
De vermelho
Prende-a neste lamento
Feito de estrelas cadentes

Enfeita o meu pranto, com o teu
olhar sereno,
Pousado no meu ombro!


annadomar

terça-feira, janeiro 30, 2007

Um peixe voa!...




Um peixe voa

Segura o ar com um gesto

Na pressa do segundo

a foz almeja


O segundo peixe já não voa

Já não segura o ar com um gesto

Nem tem pressa

Em almejar a foz.


O segundo peixe

Foi de aquário.


Nuno Travanca

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Escuro!...

Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.
Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.


Rui Pires Cabral

domingo, janeiro 28, 2007

Pedaços de mim!...


Tocar as margens desta página

deste corpo como se existisse
já o corpo sem caminho”

António Ramos Rosa

sábado, janeiro 27, 2007

Calar o grito!...



Não apetece calar o grito

consentido

Preso na garganta da alma

Não apetece parar nas dunas

entorpecidas pela dor do desgaste

Apetece sim correr pela praia

Abrir os braços,

Gritar alto, bem alto

A vida de desamor

O sabor amargo do desespero

De existir sem vontade

Incapaz de correr para o mar

E dissolver este ténue fio que

nos prende sem prender!...

annadomar

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Calmaria!...


Um barco atravessa as constelações,
deixando um sulco de asa na superfície celeste.
Viajante clandestino, oculto o meu sonho
na mala do porão.
Ouço um choro de astros
amarrados ao mastro de fogo,
e sinto uma queda de cometa no abismo do horizonte.

Desenho o seu rumo no mapa
da alma.
Evito naufrágios;
rodeio arquipélagos e recifes;
procuro o centro do céu,onde
se esconde a visão de um último porto,
com o seu cais de cinza e uma erupção
de lava nos bolsos do nada.
Então, acendo um cigarro na falésia
da memória.

Os deuses seguem-me,
apanhando as beatas que deixo pelo caminho.
Correm,e ouço o bater dos corações num eco
de cansaço.
Mas não me apanham, e
dobro a esquina do ocaso,
vendo-os tossir com o fumo da noite

De volta ao convés, reabro
o diário de bordo.
E o barco continua parado
no oceano sem porto.


Nuno Júdice

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Lettera Amorosa!...


Respiro o teu corpo
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, janeiro 24, 2007

Instantes!...

Se eu pudesse novamente viver a minha vida
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais,
seria mais tolo do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiénico

Correria mais riscos, viajaria mais,
contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvetes e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e profundamente
cada minuto de sua vida; claro que tive momentos de alegria.
Mas se eu pudesse voltar a viver
trataria somente de ter bons momentos.
Porque se não sabem, disso

é feita a vida, só de momentos;
não percam o agora.

Eu era um daqueles que nunca ia a parte alguma
sem um termómetro, uma bolsa de água quente,
um guarda-chuva e um pára-quedas e,
se voltasse a viver, viajaria mais leve.

Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço
no começo da primavera e continuaria assim
até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças
se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo"


Jorge Luis Borges

Pedaços de mim!...


Tocar as margens desta página
deste corpo
como se existisse já o corpo
sem caminho

António Ramos Rosa

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Batem....



Batem leve, levemente
como quem chama por mim

Será chuva, será gente?
Gente não é certamente
E a chuva não bate assim.

Fui ver, era um malandro
a tentar levar-me para a sua seita...


Já agora, fazia falta!...

annadomar

domingo, janeiro 21, 2007

Do meu peito!...


Do meu peito partiram
Pássaros para Sul cansados
O coração bateu mais forte
Ao som das asas que se abriam
Abri a janela e já não os vi
As copas das árvores quietas
A habituarem-se à ausência
Já não me fazem falta
Guardei-os na memória das coisas
para sempre
Daquelas que sacudimos
E que no silêncio da noite
Chegam em branco
Nos sonhos, que despimos


Do meu peito partiu a esperança!...

annadomar

Estar!...



Estar entre amigos

Faz-nos esquecer a espiral

Do desalento

Em que nos embrulhamos

Sem regresso!...

annadomar

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Amor de Fogos!...

vêm sôfregos os peixes da madrugada
beber o marítimo veneno das grandes travessias
trazem nas escamas a primavera sombria do mar
largam minúsculos cristais de areia junto à boca
e partem quando desperto no tecido húmido dos sonhos ....

vem deitar-te comigo no feno dos romances
para que a manhã não solte o ciúme e de novo nos obrigue a fugir....
.... vem estender-te onde os dedos são aves sobre o peito
esquece os maus momentos
a falta de notícias a preguiça ergue-te

e regressa para olharmos a geada dos astros deslizar nas vidraças
e os pássaros debicam o outono no sumo das amoras....
.... iremos pelos campos à procura do silente
lume das cassiopeias...

Al Berto

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Se às vezes digo que as flores...

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria,
um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.


Alberto Caeiro
in « O Guardador de Rebanhos»

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Litania!...

O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor de um fruto,o peso de uma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.


De Até Amanhã (1956)
Eugénio de Andrade

terça-feira, janeiro 16, 2007

Adeus!...

É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras, Sem lágrimas
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes a iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.



Miguel Torga

segunda-feira, janeiro 15, 2007

A rua!...


Submetida, percorri aquela rua poente
Sem perceber que o estaria a fazer
As luzes eram tristes!...

annadomar

sábado, janeiro 13, 2007

Saberás tu?...

Saberás tu, o que são dias e dias embrulhados em silêncios?
As mãos escorregam pelo teclado
Os dedos atropelam as letras, que se juntam para as palavras
Essas palavras sem o perfume do afecto, são loucas e despreocupadas
Vazias, sem sentimentos solidários, pelo que possa vir a acontecer
Habitam ruas estreitas, escorregadias e sem pregões
Que ajudem a distrair a solidão dos sentidos
Perdem-se por vontade própria em becos escuros.
Saberás tu, o que são dias e dias sem a cor do sonho?

annadomar



sexta-feira, janeiro 12, 2007

Blues!...

Tua voz desliza como um pássaro
aberto na lâmina do dia
ilha que se levanta e voa a partir do Sollamento
gritado da floresta por sua gazela perdida
choro grande do vento nas montanhas
ao nascimento de um escravo mais
na história do vale

Tua voz vem de dentro da cidade
de todas as ruas bairros e leitos da cidade
onde houver calor de pernas
contar o silêncio das horas guardadas a soco no sarilho
dos ventres
com um jazzman a assobiar na escuridão dos pares
a memória ácida do chicote
nos porões do Mundo .


(Subscrito a giz - 60 poemas escolhidos)
David Mestre

quinta-feira, janeiro 11, 2007



"META ISTO NA SUA CABEÇA"

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Os nomes!...

A tua mãe dava-te nomes pequenos, como se a maré os trouxesse com os caramujos. Ela queria chamar-te afluente-de-junho, púrpura-onde-a-noite-se-lava, branca-vertente-do-trigo, tudo isto apenas numa sílaba. Só ela sabia como se arranjava para o conseguir, meu-baiozinho-de-prata-para-pôr-ao-peito .
Assim te queria eu às vezes.



Eugénio de Andrade
( in,Antologia Breve)

segunda-feira, janeiro 08, 2007

O sono!....

E ao acordar, o azul do quarto
Coa as manhãs
Filtradas pela luz
a entrar nas frestas
a massajar a alma
a espreguiçar os olhos.
Ao fundo, o barulho dos carros
Embalam o sono, também azul!...

annadomar

domingo, janeiro 07, 2007

Volta até a mim no silêncio da noite!...

Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço.
Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos.Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa;
e traz
contigo a maré da manhã com que
todos os náufragos sonharam.

Nuno Júdice

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Não sou eu!...



Às vezes já não sou eu,

Mas sim aquilo,

que tu imaginas que sou

Nos espelhos dos teus olhos...

annadomar

quarta-feira, janeiro 03, 2007

As mãos pressentem!...


As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz

encalhada como um barco nos confins do olhar
ergues de novo as cansadas e sábias mãos tocas o vazio
de muitos dias sem desejo e o amargor húmido
das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada


Al Berto

terça-feira, janeiro 02, 2007

O que ne dói!...


O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma


Fernando Pessoa

segunda-feira, janeiro 01, 2007



Como um anjo

Veste-me o sorriso roubado

A vontade de acreditar

Ou apenas um abraço

que me devolva o calor

Perdido na noite fria!...

annadomar